domingo, 18 de julho de 2010

Fábula dos homens e suas palavras. Homem número 3




Um homem, quando muito jovem, foi mordido por uma palavra.
O assalto veio de um poema infecciosamente belo, que o contaminou atingindo o coração, como um mal de Chagas. Incubado no princípio, assintomático em sua fase aguda, o caso foi se tornando crônico, progredindo silencioso por vinte anos. Paralelo aos super-heróis, esse tipo era também uma espécie de Hulk, homem-aranha ou vampiro (comenta-se que igualmente não suportava alho), pois sua força, por ironia, vinha de sua maldição.
Quando a febre se tornava insuportável, ele escrevia com raiva e espírito de vingança, deixando nas páginas torrentes vermelhas, pulsantes. Assim ele aliviava a exaltação, desenfreado sem pontos nem vírgulas naquela hemorragia de letras, perigosamente contagiante ao leitor. Passada a compulsão, novamente assumia feição humana, podendo pedir um pingado no boteco, sem que o cidadão ao lado lhe adivinhasse a condição de besta-fera.
Esse homem que tem a palavra em seu sangue, não tem escolha. É um escritor.

Fábula dos homem e suas palavras. Homem número 2

Um homem nasceu com intenso desejo de aprender e saber. Percebia desde pequeno o milagre em cada folha, pedrinha, inseto. Sua memória era muito espaçosa e nela ele guardava uma foto de cada nova descoberta. Quando foi apresentado às palavras, segurou uma delas contra a luz e viu que elas tinham várias dimensões e eram multifacetadas. Além disso, se encaixavam. A mesma palavra, dependendo da maneira que fosse chacoalhada poderia produzir diversos sons.
O português anasalado, os duros idiomas escandinavos, o onomatopéico inglês, o delicado tupi. Como rápido exemplo, exibia uma das faces de um trapezoidal termo que descreve um animal doméstico:
Cachorro
Chien
Dog
Inu


Havia palavras cabeludas, compostas, sagradas, secretas.
Ele só não gostava de pesar ou medir palavras, o que lhe causava um efeito colateral, pois como todos sabem, cada coisa dita ou pensada exerce pressão. Por isso ele tinha muita dor nas pernas, devido ao peso continuamente acumulado desse léxico, guardado ao acaso em sua vasta galeria mental. Muitos desses objetos ele usava no dia a dia, outros, pegava com carinho polia e colocava cuidadosamente de volta na estante. As amava como seres naturais, mas seu grande dom era compartilhar esse conhecimento com outras pessoas. Não por exibição, mas por curiosidade e amizade ao saber. Tornou-se professor.

domingo, 4 de julho de 2010

Fábulas dos Homens e suas palavras. Homem número 1.

Um homem se deu conta que havia vida nas palavras e que apesar de seus temperamentos diversos, ele tinha talendo para dominá-las. Percebeu que poderia colocá-las a seu serviço e delas tirar algum dinheiro. Transformou-as em caixeirinhas capazes de vender tudo. Sapatos, parques de diversão, políticos, o que fosse. Tornou-se um publicitário e seguiu gerenciando suas articuladas balconistas de loja. Ocupado demais com seus adjetivos e predicativos ele foi abandonado pela mulher que amava.
Mas as palavras, que o respeitavam como patrão, ficaram ao lado dele e o consolaram. Dessa dor nasceu seu primeiro livro. Foi aí que ele notou que os livros também poderiam render lucro. Colocou suas palavras em fila, maquiadas de forma a fisgar os fregueses, como divertidas garotas de programa. Publicou e fez disso meio de vida, em literária caftinagem. Foi acumulando bens e montou família. Quando teve seu primogênito, por falta de outro brinquedo que lhe ocorresse, deu a ele algumas palavras e encantou-se quando o menino riu. O homem achou aquilo lindo. Deu mais palavras para o garoto que se abria em gargalhadas. Passou a recolher e colecionar cada trechinho de efeito cômico para dar ao filho. Mas logo viu sua vantagem e encaixotou os pobres vocábulos em cubículos. Viraram almanaques de anedotas para crianças. Se passa uma frase boa, ele assovia e esfrega as mãos. Virou editor e considera-se um sucesso.